Capitalismo cognitivo, a via aberta para a economia criativa

O capitalismo cognitivo e a economia criativa são duas formulações eufemísticas e metafóricas do capitalismo tecnológico e financeiro da ordem global e ambas integram o novo paradigma da sociedade da informação, do conhecimento, da comunicação e da cultura. Embora as duas formulações tenham surgido em momentos diferentes, podemos afirmar que são descendentes diretos da Grande Rede Internet e das tecnologias de informação e comunicação (TIC) que surgiram a bordo da grande rede. Nessa medida, o capitalismo cognitivo é uma via aberta para a expansão da economia criativa em todas as suas dimensões. Façamos, primeiro, uma brevíssima incursão histórica.

A crise do petróleo, a hiperinflação e a desvalorização monetária da década de 1970 fizeram perder imenso poder de compra e competitividade aos europeus e mostraram como, após trinta anos gloriosos entre 1945 e 1975, a economia europeia tinha atingido a sua fase madura. Era tempo de mudar de vida, tanto mais que a revolução chinesa de 1979 se preparava já para tirar partido da situação e entrar no jogo global da deslocalização industrial.

A doutrina, a ciência económica e a política de inspiração neoliberal retiraram o estado de cena, e aí começou o capitalismo pós-industrial e a política neoliberal de privatização, desregulamentação e desregulação. Do mesmo modo, a relação capital-trabalho do modelo industrial fordista, compacta e homogénea, deu lugar a um modelo mais terceirizado e pós-industrial e a uma relação capital-trabalho mais diferenciada no quadro de uma economia globalizada que cresce a partir dos anos noventa. Na transição de milénio, a emergência da sociedade da informação e do conhecimento, por via da explosão do capitalismo tecno-digital e cognitivo, introduziu-nos a uma relação capital-trabalho mais flexível, desmaterializada e inovadora, com os dois polos da relação em plena transformação pós-estrutural e a criatividade a desempenhar um papel nuclear no funcionamento do sistema operativo da economia do conhecimento que hoje junta comunidades inteligentes, online e offline, redes distribuídas e plataformas colaborativas em quase todas as áreas de atividade.

Aqui chegados, e numa breve síntese, podemos dizer que as dez bases do capitalismo neoliberal, tecnológico e financeiro são as seguintes:

  1. Desmaterialização produtiva via automação, digitalização e inteligência artificial
  2. Concentração e oligopolização da economia global
  3. Desindustrialização e desmaterialização da relação capital-trabalho
  4. Deslocalização das bases logísticas das cadeias de valor
  5. Financeirização do capital e sua extraterritorialidade
  6. Crescimento das desigualdades sociais e assimetrias territoriais
  7. Crescimento do risco climático e ecológico extremo
  8. Crise nas relações de sociabilidade e estabilidade do núcleo familiar tradicional
  9. Crescimento do populismo e radicalização sociopolítica
  10. Bipolarização dos regimes políticos, democracia versus autocracia

Do mesmo modo, e em sintonia com as determinações do capitalismo cognitivo, podemos dizer que as dez bases da economia criativa são as seguintes:

  1. Emergência da sociedade da informação e do conhecimento em rede
  2. Relevância cognitiva dos signos distintivos territoriais (SDT)
  3. Importância da inteligência emocional na geografia cultural dos territórios
  4. Crescimento do cluster das indústrias culturais e criativas (ICC)
  5. Potencial colaborativo das comunidades, redes e plataformas (CRP)
  6. Conexão das comunidades online e offline e a força dos laços fracos
  7. Reforço das cadeias de valor criativas e a gestão de ativos criativos
  8. Reforço das hiperligações entre economia criativa e economia produtiva
  9. Consolidação da economia de bens comuns colaborativos (BCC)
  10. Articulação das escalas de tempo e espaço na governança territorial multinível

Vivemos, como sabemos, um tempo de grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, demográfica, migratória, socioeconómica, securitária – algumas delas com impactos estruturais profundos. Neste contexto, as relações entre capitalismo cognitivo e economia criativa ou, se quisermos, as hiperligações entre economia criativa e economia produtiva são, sem qualquer dúvida, em período de grandes transições, uma das áreas de trabalho mais interessantes e relevantes que a academia, a administração e as atividades económicas têm o dever de investigar e aprofundar. Seguem-se algumas considerações a propósito.

Em primeiro lugar, e num plano mais concetual, há uma relação estrutural de causa-efeito entre tecnologias de informação e comunicação (TIC) e territórios inteligentes e criativos (TIC); através das estratégias de especialização inteligente e criativa cada região procura a melhor trajetória para levar a bom termo esse nexo de causalidade.

Em segundo lugar, e num plano mais instrumental, a economia criativa aparece como geradora de inputs para a economia produtiva, a partir de quatro áreas principais de intervenção, a saber: património e paisagem, ciência e tecnologia, arte e cultura,

inclusão social e talento criativo; é a partir destas quatro áreas que a economia criativa gera os circuitos de inovação necessários à formação de valor acrescentado para a economia produtiva e seus produtos e serviços finais.

Em terceiro lugar, e num plano mais organizacional, o papel do ator-rede é absolutamente decisivo. A pergunta que se impõe é, então, esta: qual é a entidade – empresa, associação, centro de investigação, universidade ou politécnico, estrutura de missão – que é capaz de desempenhar a função de agente-principal ou de ator-rede e que nessa tarefa é competente para desencadear e conciliar, de forma consistente, todos os fatores de criatividade que permitem agregar valor, distribuir rendimento e dar expressão territorial relevante às respetivas cadeias de valor regionais?

Em quarto lugar, e num plano mais programático, o guião da economia criativa permite-nos considerar cinco grandes linhas de atuação ou modos de abordagem: o modo como age sobre a economia regional no que diz respeito às interligações entre cadeias de valor do território (1), o modo como, em cada região, concebe e compõe os diferentes elementos das quatro áreas de intervenção (2), o modo como lida com os eventos das indústrias culturais e criativas e sua contribuição para a valorização do território (3), o modo como lida com a atração do talento criativo e as várias plataformas onde se faz a gestão do capital humano (4), o modo como lida com as externalidades, positivas e negativas, das grandes transições em curso e as internaliza (5).

Em quinto lugar, e num plano mais operacional, a economia criativa lida com diversos fatores de criatividade das cadeias de valor (CV), cuja consistência e coesão territoriais estão sempre em causa, por exemplo: a sustentabilidade e circularidade das CV (1), a eficácia e eficiência da rede logística das CV e suas interligações territoriais (2), as relações de poder no interior das CV e a redistribuição interna do valor acrescentado (3), a valorização do capital humano e do emprego qualificado e a mobilização do capital social (4), o acesso e a cooperação tecnológica e digital dentro da CV e a intensidade-rede das hiperligações entre diferentes cadeias de valor regionais (5) a importância da marca territorial, o modo de incorporação de valores intangíveis e imateriais e a internacionalização de uma CV (6).

Em sexto lugar, e num plano mais estético e cultural, a economia criativa precisa de mobilizar a geografia sentimental e cultural em redor do território-rede; nesta linha de pensamento justifica-se uma referência final a três elementos complementares absolutamente necessários ao guião da economia criativa: em primeiro lugar, o

storytelling do território-rede, a sua narrativa existencial e prospetiva, em segundo lugar, uma preocupação genuína com a conexão entre comunidades online e offline e o reconhecimento da chamada força dos laços fracos entre as duas comunidades, em terceiro lugar, o destaque que é devido às atividades artístico-culturais, não apenas como eventos recreativos locais e regionais, mas, sobretudo, como modo de administrar o quadrado mágico da economia criativa que liga os signos distintivos territoriais (SDT), as indústrias culturais e criativas (ICC), os bens comuns colaborativos (BCC), as comunidades, redes e plataformas (CRP).

Nota Final

O leitor já se deu conta de que o capitalismo cognitivo e a economia criativa são apenas dois suaves eufemismos metafóricos para o capitalismo tecnológico e financeiro global prevalecente, mas esse facto não reduz nem retira a crítica pertinente que está contida e traduzida na expressão, sociedade da informação, do conhecimento, da comunicação e da cultura. De resto, quero crer que a academia (universidade ou politécnico), a administração (CCDR e CIM), as associações e núcleos empresariais, o universo da economia social e cultural, saberão construir o quadrado mágico de interação e criatividade geral de onde emergirão as comunidades inteligentes, as redes distribuídas e as plataformas colaborativas e, a partir daí, construir uma estrutura de missão no âmbito territorial e regional de cada NUTS II ou NUTS III tendo em vista constituir um ator-rede que seja competente para desenvolver as funções nucleares de coordenação, networking e curadoria territorial. Quanto ao resto, os processos pedagógicos e as boas práticas da economia criativa são fundamentais para democratizar os vários acessos e participações, seja na coprodução da atividade artística, nas boas práticas ambientais, nas várias modalidades de inclusão e inovação social ou nas múltiplas iniciativas de empreendedorismo económico. Esta democratização dos acessos e das participações é particularmente sensível nas áreas de baixa densidade (ABD), donde a importância de ter um mapeamento criterioso dos ativos da economia criativa e um bom guião metodológico para aumentar a sua intensidade-rede.