A verdade é um tipo raro de informação 

Yuval Harari, Visão, 19 de dezembro de 2024 

A verdade é um tipo raro de informação. Esta frase foi proferida por Yuval Harari num artigo escrito para a Revista Visão (19 dezembro 2024). Na outra face da moeda encontramos outra frase igualmente pertinente, a saber, sem confiança a democracia não funciona. No ano em que as instituições foram reconhecidas com o Prémio Nobel da Economia, estas duas afirmações sobre verdade e confiança são muito disruptivas para todo o sistema político-institucional. Façamos uma breve incursão pelo tema. 

1. Sabemos que, hoje, as sociedades estão construídas sobre três grandes pilares, isto é, as instituições e as burocracias, as redes e as plataformas, os mercados e as corporações, sendo que, no final, são os nossos comportamentos, individuais e coletivos, que determinam os modos de articulação e as relações de força em presença. 

2. A procura da verdade é uma tarefa muito complexa, dá muito trabalho, leva tempo, é cara. Ora, o método científico só está ao alcance de alguns privilegiados enquanto a ficção é simples e barata e está disponível sob múltiplas formas. A lei do menor esforço troca a procura da verdade pelo consumo de informação falsa. As pessoas só acreditam no que confirma as suas expetativas, mesmo que seja falso. A verdade é uma escolha de cada um. 

3. Face ao caos informativo e comunicacional regressam as crenças, os mitos, os dogmas, as teorias da conspiração. Tudo pode ser desacreditado, o caos está lançado. As pessoas não têm tempo nem paciência para aprender. Chegam as máquinas inteligentes e a inteligência artificial. A correlação estatística e os modelos de linguagem inteligente substituem o espaço público e a argumentação contraditória e explicativa. Cresce a verdade alternativa, reduz-se o campo da verdade científica. 

4. A chegada da IA cria um espaço de dúvida metódica. O protocolo, o processo e o procedimento do algoritmo tornam a sua aprendizagem automática muito mais misteriosa e, logo, a manipulação dos dados muito mais sofisticada. O algoritmo enquanto tecnologia é, ele próprio, uma criação humana, mas, também, uma caixa negra que só é aberta depois de o acidente ter ocorrido. 

5. A IA não nos obriga a acreditar, mas oferece-nos uma infinidade de narrativas que podemos moldar ao nosso gosto, à verdade da nossa bolha. A narrativa algorítmica torna-

-se viciante e aditiva e o que maximiza a nossa atenção não é o verdadeiro, mas o sensacional, o que é emocionalmente intensivo, isto é, o que confirma a nossa expetativa e esperança. No limite, só existem as nossas verdades, o espaço comum da argumentação e do contraditório desapareceu. 

6. Neste contexto, a IA é uma infraestrutura crítica que redefine a relação entre o poder, o conhecimento e a liberdade de escolha. A questão mais pertinente nesta altura é esta: como decidir num contexto que é moldado pela IA, num sistema que compreendemos mal e que não controlamos? 

7. A primeira resposta é ter uma visão egoísta e narcísica das nossas relações, onde ninguém está interessado em descobrir a verdade, apenas a tentar enganar-se mutuamente e, assim, ganhar mais poder para si próprio. As pessoas perdem toda a confiança nas instituições, sobretudo aquelas que fazem investigação e escrutínio público. 

8. A segunda resposta é apostar fortemente na literacia digital e inteligente tendo em vista prevenir uma verdadeira expropriação da linguagem e do pensamento, estar avisado sobre os vários panóticos de vigilância que nos observam a todo o tempo e criar um sistema de alertas contra os sensores que se transformam em censores. 

9. A terceira resposta é reforçar todas as funcionalidades do sistema democrático de representação e o seu espaço público comum, tendo em vista prevenir a expropriação das suas funções mais basilares pelo sistema tecno-digital. A vida de milhões de pessoas está em risco ao ser impactada por decisões sem transparência e supervisão, ao enfrentar o anonimato das redes, a expansão do crime cibernético e a dissolução da responsabilidade individual. Só a política responsável pode definir os limites da ação conjunta e comum. 

10. A quarta resposta é reforçar o método científico e os processos de regulação. A verdade precisa de ser provada e demonstrada, não depende de uma ideologia, autoridade ou algoritmo. A complexidade envolvida na descoberta da verdade não se resume a uma técnica de software, os valores ético-políticos, os direitos humanos e a filosofia social nunca foram tão fundamentais como nos tempos que correm para, justamente, definir os limites da ação e da esperança políticas. 

Nota Final 

Hoje, estamos, digamos, a meio da ponte. Por um lado, as narrativas acerca do futuro já não despertam a esperança política, por outro, a verdade não resiste ao 

storytelling e às técnicas de marketing. As pessoas, os lugares e os produtos são convertidos em mercadoria e destinados a serem consumidos. O storytelling virou storyselling (Chul-Han, A crise da narração, 2023). E a inteligência artificial é muito eficaz a produzir o storytelling. Fica em causa a interação fundamental entre a estrutura interpretativa da cultura e a mediação proporcionada pela esfera mediática. A verdade e a confiança necessárias à realização do projeto político dificilmente resistirão à erosão do tempo perdido. 

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