O mar e a cidade de Francesco Capellini
A temática dos direitos dos/as migrantes é um dos maiores, e provavelmente dos mais visíveis, desafios das democracias atuais. Em particular, destacam-se duas reflecções sobre outros tantos aspetos bastante familiares à narrativa pública: a liberdade de movimento e a integração.
Cidadxs e clandestinxs
A livre circulação nas ruas das nossas cidades, bem como entre diferentes estados e continentes, é algo que assumimos por garantido, mas na realidade é um privilégio baseado num critério sem legitimidade nem mérito: a casualidade do lugar onde nascemos. Conseguintemente, se não és cidadão/cidadã e não tens dinheiro, o direito à livre circulação pode desaparecer.
Os Estados-Nação, tentando sobreviver à própria obsolescência num mundo que está a enfrentar desafios primorosamente transnacionais, agarram-se à única coisa que ainda podem controlar, nomeadamente as fronteiras, apelando à necessidade humana de proteção. Uma necessidade que parece ser legitima só para os/as cidadãos/ãs. O direito à segurança, bem como à livre circulação, pára de ser direito humano e torna-se um assunto à mercê do poder político.
Vale então a pena citar a intuição de Arash Abizadeh, filósofo irano-canadiano e especialista em democracia, que revela uma das maiores contradições intrínsecas da democracia: se a justificação do poder coercivo está baseada no princípio da soberania popular (ou seja, a possibilidade daqueles que estão sujeitos ao poder, poderem expressar-se em respeito), o controlo unilateral das fronteiras estatais apenas pelos cidadãos/ãs revela-se democraticamente ilegítimo.
Portanto, a questão parece ser tratada de forma coerente apenas pelo direito internacional, que, sendo não vinculativo, revela-se também inadequado neste caso. Assim, a melhor solução que a Europa conseguiu encontrar é a Convenção de Dublin, que pode ser resumida da seguinte forma: a questão do acolhimento de refugiados/as e pessoas deslocadas é delgada aos países da primeira chegada, quase sempre os estados mediterrânicos (em troca de dinheiro, é claro).
Daqui chegamos ao segundo aspeto, aquele da integração.
Integração e inclusão social
Partindo das reflexões com as quais Amartya Sen mereceu o Prémio Nobel da Economia, depois estruturadas por Martha Nussbaum no âmbito das Teorias da Justiça, a mera concessão de um direito não é uma garantia da possibilidade de beneficiar efetivamente do que decorre desse direito (por exemplo, o direito de não ser rejeitado não garante o facto de estar em condições de ter uma vida digna): as condições pessoais e do contexto de vida fazem a diferença!
Daí, a situação dramática dos campos de refugiados como Moira, Samos e Lesbos, onde podem encontrar-se refugiados/as e alienação, enquanto direitos humanos e futuro ficam à porta. A Europa e os Estados fecham os olhos: aí a política não tem interesses. Tudo o que é possível fazer está nas mãos de ONGs e voluntários, que mostram que uma sociedade civil ativa e consciente possa ser a única esperança para uma democracia cujo significado parece ser acidental.
Saindo dos campos e entrando nas cidades onde vivemos, encontramos outros corpos invisíveis sujeitos a discriminação cultural e estrutural: os/as migrantes. Contudo, na cidade, há novos aliados da justiça social: os/as empreendedores/as sociais. Onde o estado não consegue (ou não quer) chegar de forma eficaz e o assistencialismo encadeia vidas a condições sociais aleatórias que se tornam viciosas, o empreendedor social torna-se aliado das pessoas, complementando as lutas ativistas e políticas que caraterizam o espaço de atuação cívica entre o estado e o mercado. Inspirado nos conceitos de sustentabilidade e autonomia, a empresa traz um modelo inovador que visa a transformação social. Assim, por um lado, a empresa deixa de depender do financiamento do Estado e da sua lógica, portanto da vontade política; por outro lado, desencadeia mecanismos virtuosos de transformação social, através dos quais quem chega rotulado como problema, persegue a integração tornando-se, em virtude da própria peculiar fragilidade, parte ativa da solução e uma mais valia pela comunidade de acolhimento.
Conclusão
Enfim, retirar a liberdade de movimento significa esquecer a possibilidade dum futuro melhor, a esperança que alimenta a busca de sentido pessoal, e a perspetiva duma vida que vale a pena viver.
Diferentemente, a não garantia das condições de integração torna impossível viver o presente. Significa alimentar um sistema que põe em perigo a vida das pessoas em troca de nada, significa fechar os nossos olhos e ignorar, mais uma vez, o que não nos diz diretamente respeito. Mesmo que saibamos que se trata apenas de uma casualidade.
Reconhecer isso é o primeiro passo. Agir e juntar-se à luta contra a indiferença é já estar a caminho.
En las palabras de Manu Chao
Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen “el clandestino”
Yo soy el quiebra ley