Re-apropriação da cidade de Claraluz Keiser

O contexto urbano mundial é fortemente marcado pelo fenómeno da metropolização, induzido tanto por um processo de globalização, como, correlativamente, por políticas públicas favoráveis ao paradigma da atractividade. Como consequência, assistimos a uma forte tendência à privatização e à estandardização do espaço público. Hoje, estar numa rua no centro de New Delhi, São Paulo ou Londres não nos permite necessariamente vivenciar experiências urbanas diversas. Como conceptualizou a socióloga Sharon Zukin, observamos actualmente uma “pacificação pelo cappuccino”, segundo a qual a cidade é imaginada, criada e vivida como uma mercadoria ou evento de lazer. Porém, vale a pena ressaltar, que o usufruto desta esterilização é apenas para pessoas que podem pagar por.

Ao mesmo tempo, em paralelo, diferentes respostas e reações a esta tendência têm surgido, reforçando a ideia defendida por David Harvey de que “o direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual e o acesso aos recursos urbanos, é o direito de nos transformarmos a nós mesmos, ao mesmo tempo que transformamos a cidade”. (D. Harvey, The right to the city, New Left Review nº53, 2008) Diversas iniciativas cidadãs individuais ou colectivas, da micro à larga escala, temporárias ou perenes, formais ou informais, têm proposto outras maneiras de experimentarmos e experienciarmos o espaço público através de uma re-apropriação da cidade. Assim, essas ações ajudam a ressignificar não só o modo como co-construímos o espaço público mas também como co-construímos a sociedade e o direito à cidade.

Contra o sistema: o espaço público como objeto de reivindicações
Sem menosprezar o impacto do ativismo discursivo e virtual, fundado nas redes sociais, é importante, contudo, reclamar também os nossos direitos de maneira “física” e “presente”, através da reocupação do espaço público. A cidade não deveria ser apenas o espaço onde lutas políticas acontecem, mas deveria cada vez mais ser o próprio objecto destas lutas.

A iniciativa colectiva Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara é um exemplo interessante de reivindicação do uso de um espaço urbano abandonado em Lisboa para transformá-lo num exemplo de “solidariedade activa, emancipatória e emancipadora“. Outro projeto é o “Perdi a Casa” que propõe uma apropriação dos muros do bairro e do símbolo português patrimonial dos azulejos para denunciar os efeitos nefastos da especulação imobiliária e criar uma memória colectiva das histórias de vítimas de despejos. Ou então o colectivo “Design for Everyone” de Bruxelas que questiona a forma como o espaço público inclui ou exclui certas utilizações, através da transformação do mobiliário e das infra-estruturas urbanas.

Apesar do sistema: intervenções no espaço urbano
Há também cada vez mais iniciativas cidadãs que intervêm na paisagem urbana para criar alternativas ao modelo institucional convencionado de construção e uso do espaço público. O objectivo é responder a necessidades de indivíduos e de comunidades que não estão a ser satisfeitas, em termos de qualidade de vida, cultura, serviços ou infra-estruturas. Estas ações incluem ocupações pontuais festivas do espaço público, como é o caso do Parking Day, em que parques de estacionamento se transformam em espaços de convívio, ou a realização de um jantar entre vizinhos nas escadas de uma rua em Lisboa.

Mas também podem ser intervenções físicas no espaço urbano, como o trabalho do artista Jan Vormann que preenche espaços vazios/abandonados com peças de Lego, ou do colectivo Serviços Gerais que realiza reparações em infra-estruturas da cidade de São Paulo.

Há também cada vez mais projetos que visam reclamar espaços abandonados e convertê-los em novos espaços públicos, como é o caso do projeto Prisão Paraíso, na Trafaria, que pretende transformar uma antiga prisão abandonada num pólo cultural e artístico comunitário. Existe também o Boxing Boxes que criou uma infra-estrutura de desporto para a comunidade num terreno urbano desprezado.

 

Com o sistema: o urbanismo participativo
Observamos também o aumento progressivo de projectos em que os modelos de organização e gestão já não encaixam apenas nos habituais padrões “top-down” ou “bottom-up”, mas antes, propõem uma parceria, mais ou menos horizontal, entre o poder público e os/as cidadãos/ãs. Em Portugal, existem poucos projectos de urbanismo participativo, sendo talvez os Orçamentos Participativos os exemplos mais pertinentes para ilustrar o impacto positivo da transformação urbana que estas parcerias podem atingir.

Independentemente do tipo, escala, duração e relação com o sistema dominante, toda a ação cidadã levanta implicitamente a questão da nossa “relação com o espaço público”: os desvios questionam a percepção dos lugares, as intervenções questionam as práticas, e as apropriações permitem explorar ideais e desejos. Assim, afirmar o direito à cidade equivale a afirmar o direito a “fazer a cidade” através da apropriação. É preciso perguntar-nos não apenas que tipo de cidade queremos, mas também como podemos reclamar o nosso direito de participar na sua construção e manutenção.

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